Em 15 de março de 2017, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) julgou a tão esperada “tese do século”, analisando se o imposto sobre operações de circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transportes intermunicipais e interestaduais e serviços de comunicação (“ICMS”) integra (ou não) a base de cálculo da contribuição ao programa de integração social (“PIS”) e da contribuição para financiamento da seguridade social (“COFINS”).
Naquela oportunidade, a Suprema Corte entendeu que o ICMS não integra a base de cálculo de PIS/COFINS, compreendendo, assim, que os tributos não se enquadram no conceito constitucional de receita bruta.
Por força do entendimento manifestado pelo STF, diversas “teses filhotes” foram aventadas, havendo a expectativa de que o Poder Judiciário aplicasse o entendimento manifestado pela Suprema Corte aos demais casos, respeitando-se a coerência jurídica e evitando, com isso, posicionamentos conflitantes sobre uma mesma temática. Isso, inclusive, foi ponderado em artigo de Bruno Romano[1], publicado pela Escola Brasileira de Tributos em 5 de outubro de 2021.
Dentre as “teses filhotes” que ganharam relevância com o julgamento do Recurso Extraordinário (“RE”) nº 574.706 (Tema nº 69) foi a da (não) inclusão do ICMS da base de cálculo do imposto sobre a renda da pessoa jurídica (“IRPJ”) e da contribuição social sobre o lucro líquido (“CSLL”) quando apurados pela sistemática do lucro presumido.
Isso, porque a base de cálculo do IRPJ e da CSLL nessa sistemática é o lucro apurado mediante a aplicação de um percentual de presunção (disposto em Lei) sobre a receita bruta verificada pelo contribuinte, de modo que o ponto de partida do cálculo do lucro (presumido) é justamente a receita bruta do contribuinte.
E se, no conceito constitucional de receita bruta, não se integram os tributos (tal como decidido pelo STF quando do julgamento do RE nº 574.706), então era de se concluir que o Poder Judiciário iria ser coerente com as premissas fixadas pela Suprema Corte e consignaria o entendimento de que o ICMS não integra a base de cálculo do IRPJ e da CSLL quando apurados pela sistemática do lucro presumido. Essa questão, inclusive, foi abordada por Bruno Romano, Rafael Pinheiro Lucas Ristow e Ricardo Elias Chahine[2] em artigo publicado em 25 de maio de 2020 pelo Estadão.
Apesar disso, para nova surpresa dos contribuintes, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), ao analisar o Tema nº 1.008 – Recursos Especiais (“REsp’s”) nºs 1.767.631, 1.772.634 e 1.772.470 –, compreendeu pela manutenção do ICMS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL quando apurados pela sistemática do lucro presumido, tendo sido fixada a tese de que “[o] ICMS compõe a base de cálculo do IRPJ – Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica e da CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido quando apurados na sistemática do lucro presumido”.
Até o momento, não houve a disponibilização dos acórdãos exarados pela Corte Superior. Contudo, sabe-se que os principais fundamentos que embasaram o posicionamento do STJ foram os seguintes:
(i) O percentual de presunção recai sobre a receita bruta e, com isso, a presunção de lucro já exclui, tacitamente, o ICMS e demais despesas;
(ii) Aplicar o percentual de redução e também excluir o ICMS da receita bruta seria aplicar, de maneira combinada, os regimes do lucro real (exclusão dos tributos) e do lucro presumido (utilização do percentual de presunção); e
(iii) O lucro presumido seria um benefício fiscal e, por isso, ao aderir tal sistemática, o contribuinte “concordaria” em aderir seus pontos positivos e também negativos.
Todavia, data venia, é de se consignar que os argumentos acima mencionados não são suficientes para se declarar que o Tema nº 1.008 do STJ seria um caso de distinguishing para não aplicação do posicionamento exarado pelo STF quando do julgamento do Tema nº 69. Isso, inclusive, já havia sido ponderado no artigo de Bruno Romano, Rafael Pinheiro Lucas Ristow e Ricardo Elias Chahine[3] que foi pelo Estadão em 25 de maio de 2020.
Isso, porque, quanto aos dois primeiros pontos acima mencionados, o contribuinte não busca a aplicação mista de duas sistemáticas de apuração (presunção sobre a receita bruta e exclusão do ICMS que seria algo afeito ao lucro real). O que o contribuinte busca é apenas a uniformização da jurisprudência, visto que, se os tributos não compõem o conceito de receita bruta, então isso deve ser aplicado para todos os impostos e todas as contribuições que apuram a base de cálculo a partir da receita bruta.
Em outras palavras, o contribuinte deseja apenas que, aplicando-se o precedente do Tema nº 69, exclua-se o ICMS do conceito de receita bruta (uniformizando a jurisprudência pátria) e, após tal exclusão, aplica-se o percentual de presunção, não se tratando da utilização cumulada de duas sistemáticas de apuração do lucro.
Com isso, o percentual de presunção disposto em lei não incorpora, também, a exclusão do ICMS, visto que, de acordo com o conceito constitucional delineado pelo STF quando do julgamento do Tema nº 69 (RE nº 574.706), a receita bruta já não contempla o ICMS (e tributos), de modo que o percentual de presunção legal não incorpora aquilo que já não está consignado dentro do conceito de receita bruta (os tributos).
Até porque, ao se excluir o ICMS da base de cálculo de PIS/COFINS e ao se incluir esse imposto estadual ao conceito de receita bruta para fins de IRPJ e CSLL quando apurados pelo lucro presumido, vê-se que o Poder Judiciário acabou criando dois conceitos de receita bruta que são antagônicos entre si.
Deste modo, vê-se que os dois primeiros argumentos não são suficientes para diferenciar o Tema nº 1.008 do Tema nº 69, não se tratando de situação de distinguishing para não se aplicar o precedente formulado pelo STF.
Já com relação ao terceiro argumento (benefício fiscal), apesar de se considerar que uma sistemática beneficiada não seja suficiente para se concordar com inconstitucionalidades existentes no sistema jurídico, tal foi utilizado pelo STF para consignar que o ICMS e o imposto sobre serviços (“ISS”) integrariam a base de cálculo da contribuição previdenciária sobre a receita bruta (“CPRB”).
Ainda assim, apesar de discordar de tal posicionamento, ainda que isso fosse suficiente para a caracterização de distinguishing (o que se admite por amor ao debate), isso não poderia ser aplicado ao Tema nº 1.008, visto que – tal como mencionado no artigo de Bruno Romano, Rafael Pinheiro Lucas Ristow e Ricardo Elias Chahine[4] que foi pelo Estadão em 25 de maio de 2020 –, o lucro presumido não é um benefício fiscal, tratando-se apenas de uma sistemática simplificada de apuração (o que é reconhecido pelo artigo 44 do CTN).
Tanto é assim que Rafael Pinheiro Lucas Ristow e Ricardo Elias Chahine distribuíram memorial de julgamento aos Ministros julgadores do Tema nº 1.008 noticiando que Lei de Diretrizes Orçamentárias (“LDO”) não dispõe que a sistemática do lucro presumido seria um benefício fiscal (diferentemente do que ocorre com a CPRB e com a sistemática do SIMPLES Nacional, por exemplo, que são considerados pela LDO como sendo mecanismos de renúncia fiscal). Confira-se o trecho da LDO 2019:

Por conta disso, verifica-se que a ideia do benefício fiscal também não é suficiente para caracterizar o distinguishing para não aplicar o Tema nº 69 do STF ao Tema nº 1.008 do STJ, justamente em razão da sistemática do lucro presumido não ser um benefício fiscal, mas, sim, apenas uma sistemática simplificada de apuração do IRPJ e da CSLL.
Com base em todo o exposto, data venia, verifica-se que o STJ, quando do julgamento do Tema nº 1.008, fez surgir dois conceitos jurídicos de receita bruta – enquanto o STF se manifestou no sentido de que os tributos não compõem a receita bruta (conforme Tema nº 69), o STJ compreendeu que os tributos, por outro lado, compõem a receita bruta (Tema nº 1.008) –, de modo ser de esperar que essa contradição jurisprudencial seja devidamente corrigida.
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[1] ROMANO, Bruno. Se tributos não compõem o conceito de receita bruta, então: “precedente se cumpre”. São Paulo: Escola Brasileira de Tributos, 5 de outubro de 2021.
[2] ROMANO, Bruno; RISTOW, Rafael Pinheiro Lucas; CHAHINE, Ricardo Elias. STJ julgará tese do ICMS na base de cálculo de IRPJ/CSLL apurados pelo lucro presumido. São Paulo: Estadão, 25 de maio de 2020.
[3] ROMANO, Bruno; RISTOW, Rafael Pinheiro Lucas; CHAHINE, Ricardo Elias. STJ julgará tese do ICMS na base de cálculo de IRPJ/CSLL apurados pelo lucro presumido. São Paulo: Estadão, 25 de maio de 2020.
[4] ROMANO, Bruno; RISTOW, Rafael Pinheiro Lucas; CHAHINE, Ricardo Elias. STJ julgará tese do ICMS na base de cálculo de IRPJ/CSLL apurados pelo lucro presumido. São Paulo: Estadão, 25 de maio de 2020.
Autor: Bruno Romano
Fonte: https://ebtributos.com.br/blog/posts/a-existencia-de-dois-conceitos-constitucionais-de-receita
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